Oficial encarregado de conferir e verificar os títulos de nobreza, de declarar a paz ou a guerra e de fazer proclamações solenes.

20061201

QUE RICO 31...!

Nazombe, 31 de Dezembro 1973, escurece, são 18h, uma noite longa como muitas só com a diferença de que nesta se vão despedir deste ano, ano longuíssimo, recheado de agruras, sangue e dor. Tem a promessa de que passarão para um sítio melhor, vão acalentando essa data sem data, para deixarem aquele buraco no coração de Cabo Delgado em Moçambique, lugar em que foi improvisado num aquartelamento militar, para instalar uma Companhia. Tinha seis barracões de chapa zincada, 4 colocados no sentido dos pontos cardeais, com espaço suficiente, para comportar mais dois no meio deles, que serviam para acantonar, secretaria, bar, refeitório e dormitório dos graduados, os 4 referidos eram o dormitório dos soldados e cabos dos 4 pelotões da Companhia. Abrigos semi-subterrâneos colocados junto aos pavilhões em número suficiente para acolher milhares de ratos e o pessoal nos ataques dos “turras” (Frelimo). O acampamento estava cercado com arame farpado, junto a este valas no solo, para a defesa e protecção nos ataques, no seu exterior tinha uma pequena pista para aterragem de pequenos aviões e helicópteros que os deviam visitar uma vez por semana, mas muitas das vezes, só vinham de 15 em 15 dias para os abastecer de alimentos e trazer o correio que os ligava aos amigos, namoradas e família. Tinham a “checa”, uma cadela rafeira que adoptaram, numa passagem para estes seus destinos, numa povoação denominada Nairoto( muito popular por ter sido a terra aonde o famoso ciclista Joaquim Agostinho, cumpriu a sua missão militar.), que todos mimavam, tornando-se namorada do Capitão e mascote. O resto era mato, muito mato, aonde predominavam muitos embondeiros, sendo alguns deles mais que centenários pelo seu grande e imponente porte. População civil não havia, portanto eram 130 homens, sendo a grande maioria, feitos á pressa, que viviam dependentes uns dos outros e com rotinas muito curtas, pois para fora do arame farpado, só saiam para operações militares e abastecimento de água e armados até aos dentes. Por ser este dia de festejo tradicional, havia rancho melhorado e os soldados com a inseparável marmita, dirigiam-se a um espaço coberto de uma lona, que denominavam de cozinha, esboçam sorrisos de gente que desaprendeu de sorrir, na esperança de receber um pouco de meio nada, do nada que já era habitual. Aproxima-se a hora de largarem o malfadado ano, todos afogam a dor, a tristeza e a saudade com cerveja, o Novo Ano muito lentamente tarda a chegar, faltam 25 minutos, acaba de rebentar perto do acampamento, uma granada de morteiro 80, alvoroço, todos correm para as armas e abrigos, rebentam mais granadas, gritos de revolta, as metralhadoras dos “turras” fazem-se ouvir, os silvos das suas balas ao passarem pelos abrigos e valas antes de provocarem moça nos barracões, arrepiam os nossos militares, ripostam estes com as G3, morteiros 60, 80 e até o obus 190, para tentar calar e acabar com o ataque, o arraial continua, misturam-se os gritos de revolta com os de dor, o médico e os enfermeiros são chamados ás valas do 1º e 3º pelotões, mas era impossível atender os seus pedidos, muitos estrondos de balas e granadas, fazem-se ouvir por muito mais tempo, tanto tempo que parece interminável, quase uma hora esgotada e os tiros vão acabando, soa o último do ataque mais longo e mais intenso que tiveram até agora. Feridos só com arranhões de estilhaços de granada e escoriações, dolorosos mas inofensivos. Acabou o 73 e entrou o 74 da pior maneira, os ânimos começam a voltar, um alferes com cara de menino, mas com alma até Almeida, diz com humor, -- Que rico 31 he,he he, vamos beber mais um copo..! Dia 1 de Janeiro de 1974, o 2º pelotão, prepara-se para o abastecimento de água, armados a rigor e sem facilidades, tinham que fazer um percurso de 1km, ao chegarem ao local, deflagra uma mina anti-pessoal, pisada pelo Francisco, que ficou sem a perna, logo de seguida rebenta uma emboscada e um novo ataque ao aquartelamento, o Anúrio ao deitar-se para se proteger, acciona outra mina e morre com a cabeça desfeita, um pandemónio infernal, os homens do 2º pelotão temem os tiros, mas temem muito mais o campo de minas que instalaram á volta do poço, os camaradas do aquartelamento não se podem defender, por terem na direcção do ataque os camaradas que estavam na água, o alferes com cara de menino, um furriel e 5 soldados num acto de bravura e loucura, saltam para cima da berlliet que estava preparada para rebenta minas e sem medo das balas, vão em direcção ao local do abastecimento de água em corta mato, outros camaradas fizeram o mesmo a pé por outros locais e por pouco quase lhes acontecia o que se achava impossível nesta guerra, o combate corpo a corpo. Estes bravos provocaram a fuga dos turras e o fim do flagelo que tinha durado 1h e 30m. No balanço final das vítimas, as nossas tropas tiveram os dois mortos referidos e três feridos, o dito Francisco e mais dois com tiros nos membros inferiores, do lado dos turras encontrámos três mortos e nenhum ferido, pois normalmente eles levavam os seus. Feitas as evacuações dos mortos e feridos, surge um soldado com muitos panfletos, com uma mensagem de Samora Machel aos soldados portugueses que dizia, “ vocês gostavam que invadissem a vossa terra, que violassem as vossas mães, irmãs e mulheres…Já repararam que o vosso país é governado por trinta famílias, onde pontificam os Melos, Champalimauds, Espíritos Santos… Vão para o vosso País e lutem pela vossa Liberdade, como nós fazemos na nossa terra” e outras coisas mais que fizeram acordar os espíritos mais esclarecidos e que andavam adormecidos com o calor da guerra e só pensavam em salvar a vida. Alguns soldados ripostavam, “mulheres, mulheres! A gente já não as vê há onze meses…”

10 Comments:

Blogger Pé de Salsa said...

Boa noite, Arauto (da Ria),

Li e reli este seu texto.

Faz-nos sentir naquele ambiente de terror, de medo e de dor.

Ainda há quem gostasse de voltar a viver no tempo de Salazar!
Ai os jovens! Estes jovens que não conheceram esses tempos mas que falam, falam como se soubessem o que foi viver numa ditadura (de direita)...

Por hoje, fico por aqui. Emocionou-me demasiado.

Um abraço e tenha um bom fim-de-semana.

10:18 da tarde

 
Blogger Al Berto said...

Viva Arauto:

Já reparou que foram precisos 13, exactamente 13 anos, para os nobres militares de Abril "acordarem" da letargia em que estiveram todos esses anos?

Porque não deixar no ar estas perguntas:

- Onde estava a tão moralista igreja (de Cerejeira) nessa altura?
- Que conselhos dava a Salazar?

Um abraço,

11:17 da tarde

 
Blogger Saramar said...

Arauto, bom dia.

Em minha mente feminina, a guerra é suprema barbárie ao mesmo tempo que representa a mais cruel forma de dominação do homem sobre o homem.
Enoja-me imaginar que os senhores da guerra e seus acólitos permanecem protegidos enquanto os filhos alheios são lançados, indefesos, em carnificina fatal.
Os seres irracionais são mais inteligente que nós, já percebi.
Perdoe-me a veemência, mas sempre fico meio exaltada quando leio sobre guerras. E, neste texto, você quase desenhou as condições a que os pobres soldados eram submetidos na imunda guerra colonialista. Aliás, imunda como todas as guerras.
Obrigada, meu querido.
Eu tenho aprendido muito aqui no seu blog. Principalmente sobre solidariedade e compaixão, sobre as quais você nos dá lições constantes.

beijos, cheios de admiração.

3:35 da manhã

 
Anonymous Anónimo said...

Guerra, algo que me deixa particularmente triste. Acredito que quase a todos nós que de uma forma ou outra estivemos “perto” dela.
Seu texto esta simplesmente comovente.
Quem sabe um dia o homem compreenda que existem outras formas de conseguirem resolver as diferenças de outra forma.
Deixo-te um beijo.
Eärwen Tulcakelumë
03.12.06

6:32 da tarde

 
Blogger Migas (miguel araújo) said...

excelente história, meu caro.
daquelas com direito a cospiração revolucionária.
Um abraço

11:41 da tarde

 
Blogger jguerra said...

Boa história... vê-se que viveste esse pesadelo da guerra. Eu vou presenciando-a de longe, triste por aqueles que a vivem de dentro.
Um abraço

2:25 da tarde

 
Blogger Luís said...

São textos como estes que nos lembram que nem sempre a vida foi tão fácil. Tempos em que uma ideologia era mais do que um emblema para exibir em conversas de café.

Obrigado por possibilitares o acesso a alguma lucidez histórica, política e social às gerações mais recentes.

Um abraço

1:06 da tarde

 
Blogger Pé de Salsa said...

Bom dia, Arauto (da Ria),

Passo só mesmo para lhe desejar um bom dia e um óptimo fim de semana prolongado.

Continuo a lê-lo e a pensar "como gostaria de escrever assim..."

Penso que este seu texto deveria ser publicado na imprensa a nível nacional pois como disse e muito bem o Luís " possibilita o acesso a alguma lucidez histórica, política e social às gerações mais recentes."
Quanto mais não seja, por isto mesmo!

Um abraço.

12:48 da tarde

 
Blogger Al Berto said...

Viva Arauto:

Por agora desejo-lhe um óptimo fim de semana.
Um abraço,

7:03 da tarde

 
Blogger Eärwen said...

Amigo,
Vim agradecer de pronto as lindas palavras deixadas em meu espaço.
Serás sempre bem vindo.
Com carinho.
Eärwen

9:22 da manhã

 

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