
Nazombe, 31 de Dezembro 1973, escurece, são 18h, uma noite longa como muitas só com a diferença de que nesta se vão despedir deste ano, ano longuíssimo, recheado de agruras, sangue e dor. Tem a promessa de que passarão para um sítio melhor, vão acalentando essa data sem data, para deixarem aquele buraco no coração de Cabo Delgado em Moçambique, lugar em que foi improvisado num aquartelamento militar, para instalar uma Companhia. Tinha seis barracões de chapa zincada, 4 colocados no sentido dos pontos cardeais, com espaço suficiente, para comportar mais dois no meio deles, que serviam para acantonar, secretaria, bar, refeitório e dormitório dos graduados, os 4 referidos eram o dormitório dos soldados e cabos dos 4 pelotões da Companhia.
Abrigos semi-subterrâneos colocados junto aos pavilhões em número suficiente para acolher milhares de ratos e o pessoal nos ataques dos “turras” (Frelimo).
O acampamento estava cercado com arame farpado, junto a este valas no solo, para a defesa e protecção nos ataques, no seu exterior tinha uma pequena pista para aterragem de pequenos aviões e helicópteros que os deviam visitar uma vez por semana, mas muitas das vezes, só vinham de 15 em 15 dias para os abastecer de alimentos e trazer o correio que os ligava aos amigos, namoradas e família. Tinham a “checa”, uma cadela rafeira que adoptaram, numa passagem para estes seus destinos, numa povoação denominada Nairoto( muito popular por ter sido a terra aonde o famoso ciclista Joaquim Agostinho, cumpriu a sua missão militar.), que todos mimavam, tornando-se namorada do Capitão e mascote. O resto era mato, muito mato, aonde predominavam muitos embondeiros, sendo alguns deles mais que centenários pelo seu grande e imponente porte. População civil não havia, portanto eram 130 homens, sendo a grande maioria, feitos á pressa, que viviam dependentes uns dos outros e com rotinas muito curtas, pois para fora do arame farpado, só saiam para operações militares e abastecimento de água e armados até aos dentes. Por ser este dia de festejo tradicional, havia rancho melhorado e os soldados com a inseparável marmita, dirigiam-se a um espaço coberto de uma lona, que denominavam de cozinha, esboçam sorrisos de gente que desaprendeu de sorrir, na esperança de receber um pouco de meio nada, do nada que já era habitual. Aproxima-se a hora de largarem o malfadado ano, todos afogam a dor, a tristeza e a saudade com cerveja, o Novo Ano muito lentamente tarda a chegar, faltam 25 minutos, acaba de rebentar perto do acampamento, uma granada de morteiro 80, alvoroço, todos correm para as armas e abrigos, rebentam mais granadas, gritos de revolta, as metralhadoras dos “turras” fazem-se ouvir, os silvos das suas balas ao passarem pelos abrigos e valas antes de provocarem moça nos barracões, arrepiam os nossos militares, ripostam estes com as G3, morteiros 60, 80 e até o obus 190, para tentar calar e acabar com o ataque, o arraial continua, misturam-se os gritos de revolta com os de dor, o médico e os enfermeiros são chamados ás valas do 1º e 3º pelotões, mas era impossível atender os seus pedidos, muitos estrondos de balas e granadas, fazem-se ouvir por muito mais tempo, tanto tempo que parece interminável, quase uma hora esgotada e os tiros vão acabando, soa o último do ataque mais longo e mais intenso que tiveram até agora. Feridos só com arranhões de estilhaços de granada e escoriações, dolorosos mas inofensivos. Acabou o 73 e entrou o 74 da pior maneira, os ânimos começam a voltar, um alferes com cara de menino, mas com alma até Almeida, diz com humor, -- Que rico 31 he,he he, vamos beber mais um copo..!
Dia 1 de Janeiro de 1974, o 2º pelotão, prepara-se para o abastecimento de água, armados a rigor e sem facilidades, tinham que fazer um percurso de 1km, ao chegarem ao local, deflagra uma mina anti-pessoal, pisada pelo Francisco, que ficou sem a perna, logo de seguida rebenta uma emboscada e um novo ataque ao aquartelamento, o Anúrio ao deitar-se para se proteger, acciona outra mina e morre com a cabeça desfeita, um pandemónio infernal, os homens do 2º pelotão temem os tiros, mas temem muito mais o campo de minas que instalaram á volta do poço, os camaradas do aquartelamento não se podem defender, por terem na direcção do ataque os camaradas que estavam na água, o alferes com cara de menino, um furriel e 5 soldados num acto de bravura e loucura, saltam para cima da berlliet que estava preparada para rebenta minas e sem medo das balas, vão em direcção ao local do abastecimento de água em corta mato, outros camaradas fizeram o mesmo a pé por outros locais e por pouco quase lhes acontecia o que se achava impossível nesta guerra, o combate corpo a corpo. Estes bravos provocaram a fuga dos turras e o fim do flagelo que tinha durado 1h e 30m. No balanço final das vítimas, as nossas tropas tiveram os dois mortos referidos e três feridos, o dito Francisco e mais dois com tiros nos membros inferiores, do lado dos turras encontrámos três mortos e nenhum ferido, pois normalmente eles levavam os seus. Feitas as evacuações dos mortos e feridos, surge um soldado com muitos panfletos, com uma mensagem de Samora Machel aos soldados portugueses que dizia, “ vocês gostavam que invadissem a vossa terra, que violassem as vossas mães, irmãs e mulheres…Já repararam que o vosso país é governado por trinta famílias, onde pontificam os Melos, Champalimauds, Espíritos Santos… Vão para o vosso País e lutem pela vossa Liberdade, como nós fazemos na nossa terra” e outras coisas mais que fizeram acordar os espíritos mais esclarecidos e que andavam adormecidos com o calor da guerra e só pensavam em salvar a vida. Alguns soldados ripostavam, “mulheres, mulheres! A gente já não as vê há onze meses…”